A vergonha também tem idade

Supostamente nascida com Adão e Eva, a vergonha está presente de diversas formas, e acompanha todas as faixas etárias do homem. Suas mudanças podem ajudar na formação moral e na integração social do indivíduo.

Por Murilo Benites e Victor Cardoso

Tudo começou com os dois primeiros habitantes do mundo: “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais”, Gênesis 3.7. Assim, diz a Bíblia, nasceu a vergonha. Adão e Eva, antes de comerem o fruto proibido da árvore da vida, não se sentiam envergonhados por estarem nus. Mas, quando o comeram, esconderam-se entre as arvores do jardim do Éden. Da mesma e de outras formas, crianças, jovens, adultos e idosos, enfrentam esse sentimento ao longo da vida.
Muitos conceitos do que é ou não considerado “vergonhoso” perante a sociedade mudaram com o passar dos anos. Entretanto, são raríssimos os casos de pessoas que não se envergonham de absolutamente nada. Seja vergonha de falar em público, de se relacionar com o sexo oposto ou da aparência. Mesmo que alguns mais, outros menos, quase todos os seres humanos sentem algum tipo de constrangimento.
A vergonha é resultado de um processo que começa logo cedo na vida de um indivíduo, de forma natural. A criança se percebe como pessoa e passa a entender que todos ao seu redor mandam mensagens emocionais dos mais diferentes tipos. Neste contexto, a vergonha se faz necessária para estabelecer limites, visto, em primeira instância, que crianças são incapazes de associar causa e efeito por si mesmas.
Segundo o psicólogo e doutor em educação Raymundo Lima, as crianças vão aprendendo por formação a sentir vergonha. Se ela tem pais mais rigorosos, disciplinadores e religiosos, por exemplo, sentirá vergonha antes de cometer certo ato, ou culpa, após ter cometido.
No livro O Desaparecimento da Infância, do sociólogo americano Neil Postman, é descrito o surgimento do conceito de infância, que tem seu prenúncio na Grécia Antiga e que desaparece na Idade Média junto com a capacidade de ler e escrever, a educação e a vergonha. Postman expõe a idéia de que, sem uma noção bem desenvolvida de vergonha, a infância não pode existir. 

Anna Verônica Mautner, psicanalista e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), defende a idéia de que a vergonha é resultado de uma visão depreciativa que a pessoa tem de si própria e que desde a infância até a velhice prefere-se ocultar. O ato de a criança ficar "emburrada" quando ninguém está dando atenção a ela, começa a despertar um sentimento de inferioridade e a desenvolver a vergonha também diante do próximo.

Antes da adolescência, na chamada puberdade, que se caracteriza pela transformação do corpo da pessoa, o indivíduo tem de enfrentar certos estranhamentos e até uma esquizofrenia “normal”, uma vez que nesse período ocorrem grandes mudanças físicas e psíquicas. Atos de retraimento nas atividades mais íntimas, necessidade de privacidade em simples casos como trocar de roupa na frente de irmãos ou incômodo ao falar sobre sexualidade, se torna habitual.
Para Yara Cristina Romano Silva, psicóloga da Apae de Maringá e professora dos departamentos de psicologia, pedagogia, artes visuais e letras do Cesumar (Centro Universitário de Maringá), “ninguém gosta de ser chamado de ‘baleia’, ‘gordinha’, ‘pau de cutucar estrela’ e outros inúmeros títulos, porque isso tem uma conotação negativa e faz com que a pessoa seja percebida como diferente dos outros”.
Raymundo Lima considera a adolescência um período de transformações psicossociais, no qual a constituição da personalidade será influenciada pelo olhar dos outros. O jovem geralmente tende a se envergonhar de defeitos imaginários como cor dos olhos, tonalidade da voz, tipo de cabelo ou altura, por exemplo. “Sartre diz ‘o inferno são os outros’. O outro é que nos instiga a sentir vergonha. Não falo do olhar do outro presente, mas de certo olhar que introjetamos, que funciona como polícia dentro de nós toda vez que infringirmos um código moral que já adotamos”, ressalta Lima.
A psicóloga Yara Cristina Romano Silva, por meio do trabalho que desenvolve com crianças e adolescentes com deficiência, percebe que a criança sem deficiência, desde muito cedo, aprende que não pode ficar nua, por exemplo. Por sua vez, o deficiente, às vezes já mais velho, tira a roupa em qualquer local. Isso porque não discerne naturalmente pudor ou vergonha e somente com uma orientação adequada começa a desenvolver esta percepção. “Tenho alunos adolescentes que têm vergonha de usar a camiseta da Apae. Têm vergonha porque os outros apontam e classificam a entidade como lugar de louco, bobo ou retardado e eles não se sentem dessa forma”.
Saindo dessa fase, carregando ou não algumas das vergonhas criadas, o individuo entra na fase adulta. Onde se depara com a situação de provar aos outros para que veio ao mundo e na qual o “não fazer bonito” pode atrapalhar o desempenho de inúmeras funções. Na escola, universidade e no trabalho quem sabe ou quem tem o poder passa menos vergonha perante a sociedade. Porém, segundo Raymundo de Lima aquele que tem o poder e de alguma forma é desmascarado como ilegítimo, passa por momentos de envergonhamento social, que nem sempre o leva a autocrítica. “O caso do reitor da Universidade de Brasília [Timothy Mulholland]: ele não se sente culpado de ter desviado dinheiro para embelezar o seu apartamento. O problema dele é sustentar o prestígio social adquirido como professor e reitor; ele não consegue fazer autocrítica”.
Dessa maneira o homem começa a preferir sentir culpa ao invés de sentir vergonha. “A vergonha é um sentimento muito mais pesado do que a culpa. A vergonha não tem saída, a culpa sim. Uma das grandes luminárias da sociedade ocidental foi ter inventado a culpa, que pode ser perdoada, seja da forma jurídica ou até religiosa”, diz a psicanalista Anna Verônica Mautner.
Outra área que é trabalhada, mas de forma um pouco mais amena do que na adolescência é quanto à sexualidade do adulto. Mesmo com um controle maior de seus hormônios, situações venéreas e naturais, como impotência ou frigidez, causadas pelas preocupações cotidianas, provocam desconfortos e envergonham, até entre marido e mulher. Mas, em contraponto a isso, Raymundo de Lima observa que a mídia mostra todos os dias desde pessoas posando nuas até políticos fazendo atos “sem-vergonha”. “Parece que as pessoas estão mais desinibidas, mais expostas. Mas infelizmente não estão sabendo regular a sua conduta à sua atitude social”, completa a psicóloga Yara Cristina Romano Silva.
Para apresentar a velhice, Neiza Teixeira, professora de Filosofia e escritora portuguesa, escreve o seguinte: “Normalmente, evitamos falar da velhice não somente por causa da sua imagem ou do seu cheiro (há, inconfundivelmente, um cheiro que caracteriza a velhice e um cheiro que caracteriza a juventude), mas também porque a seu lado a morte nos sorri, mostrando que no combate que desde sempre travamos ela triunfa”. Nesse contexto, a vergonha aparece primeiramente em quem não soube envelhecer.
A questão da idade faz com que as pessoas gradativamente percam o domínio da coordenação motora e da memória. Segundo a psicóloga e psicodramatista Dionéia Moura, a memória recente não fica tão acesa como a memória remota. “A vergonha pode acontecer quando alguém pergunta a um idoso sobre algo que aconteceu ontem, e ele não lembra. Mas se perguntar de algo da infância ou de muito tempo, irá lembrar com clareza e riqueza de detalhes”.
As mulheres, no sistema capitalista-consumista onde tudo deve ser espetáculo, são as maiores vítimas. Podem sentir vergonha ao ver seus seios não tão formosos como antigamente, o aparecimento de mais uma ruga, entre outras mudanças. Para o psicólogo Raymundo de Lima, as mulheres também sentem mais vergonha de perder o interesse sexual (libido) e, por exemplo, sentem vergonha em dobro quando são "largadas” pelo marido, que se apaixonou por outra mais jovem.
Os homens podem ter vergonha de, na velhice, não ter uma aposentadoria digna e mesmo os que têm essa aposentadoria, sentem vergonha de estarem fora do ambiente de trabalho em que viveram por 20, 30, 35 anos. “Muitos, vão além da vergonha e se deprimem. Muitos vivem envergonhados de estar morando em asilos ou ‘casas de repouso’. Sem ter visitação dos filhos, parentes e amigos, alguns morrem e são esquecidos” finaliza Lima.
Por outro lado, em alguns casos, idosos se dão conta de que estão no final de suas vidas e resolvem não mais se importarem com os padrões que a sociedade impõe e com o que é ou não vergonhoso perante ela e decidem viver seus últimos anos sem o pudor que sempre tiveram durante a vida.
Darwin, em seu livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872, dedica um capítulo às emoções que desencadeariam o rubor. Ele diz que “o enrubescer é a mais especial e a mais humana de todas as emoções humanas”. A preocupação exagerada pelo que os outros pensam sobre nossa aparência ou ações, para o autor, seria exagero. Segundo a psicanalista Anna Verônica Mautner as sociedades regidas pela vergonha são lugares onde se ousa pouco.
Raymundo de Lima finaliza dizendo que todos devem considerar que o sentimento de vergonha é um bom sentimento para formar e acompanhar a nossa moral e integridade social. “A falta dela, gera o cinismo, a violência, a corrupção. Penso que é pior não ter vergonha do que ter vergonha em excesso, que faz mal apenas a pessoa. A falta de vergonha faz mal a muitos.”